O deserto I
Conceito e transição
“E, naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia.” Mateus 3:1
Espiritualmente falando, que é o sentido que realmente nos interessa, deserto é aquele terreno seco, áspero, com sentido de aridez, desprovido de edificação e sem vida que existe no interior de cada um de nós. Região psíquica, compreende o ambiente ou território que deixa de corresponder aos anseios mais íntimos de alguém.
Surge e a criatura nele se identifica quando descobre que o que pensava ser a sua segurança vai acabar ou está sendo destruído. Porque observa ao redor e percebe que aquilo que cultivava e considerava como fator de sua segurança está acabando, aquilo já não tem mais substância mantenedora de vida. Todos os sofrimentos que vivenciamos, por exemplo, de qual tipo for, constituem passagens nossa pelo deserto.
O deserto, e é importante entender, não é algo finalístico, como o próprio sofrimento também não é, porque independente da intensidade e duração há sempre um começo e um fim.
Constitui o ponto de transição, uma faixa de intermediação entre dois pólos, dois pontos ou duas etapas. Quem o atravessa está, de alguma forma, posicionado entre dois ciclos da experiência evolutiva. Por isso, todas as vezes que se entra em um processo de transição, essa transição para quem quer mudar é deserto. E o que é transição? É o período ou espaço de mudança entre um estado e outro.
Imagine que você está em uma festa e liga para um convidado que ainda não chegou: “E aí, João, onde você está?” Ele responde: “Estou no trânsito.” Percebeu? Quem está em transição está em trânsito, e quem está no trânsito já saiu de onde estava, mas ainda não chegou ao seu destino.
A transição mostra o outro lado, apresenta o outro ângulo. E é uma visão de natureza íntima, e não necessariamente exterior, que constata a presença nesse ambiente.
Para se ter ideia, sempre que alguém sai de um contingente de valores, de interesses e de ação em que tem algum controle, ele entra num deserto. No momento em que ele começa a trabalhar outros aspectos no campo ascensional passa a notar a existência do deserto, que é um momento acentuadamente desconfortável.
O deserto é, de fato, aquela área do desconforto, uma vez que toda transição é desconfortável.
Você já observou que para haver qualquer mudança para melhor é preciso uma temporária desorganização? Não se faz uma obra de melhoria, seja ela qual for, sem uma fase de bagunça ou um período de conturbação. Transição é o que está jogado na confusão.
E não é preciso pensar muito para concluir que estamos todos nessa fase de mudanças.
Insegurança, medo e comodismo
O deserto, que é uma expressão simbólica, no aspecto moral e espiritual é aquele estágio da alma em que de um lado ela tem um acervo amplo de experiências e de outro um futuro desconhecido. É terreno vazio e insípido entre o passado que deixou de atender e o futuro incerto. Estar nele é sair dos territórios normais de uma área habitada com toda a infraestrutura de atendimento e entrar em um terreno em que se está de certa forma preparado, mas inexperiente frente ao novo processo que se inicia.
Quando um aluno de faculdade se forma, o que acontece? Ele está todo motivado e envolvido vibracionalmente com as lições assimiladas no curso, e com a soma de experiência de vida que trouxe até o instante de receber o diploma. Todavia, a linha operacional dele dali para frente, dentro do que o título lhe outorga, é uma incógnita.
Devido a essa dificuldade natural, ao começar a jornada para buscar se firmar em uma nova posição é comum a pessoa ser visitada por temores. A mudança traz medo e inseguranças, e é normal, porque nesse novo ambiente tudo é diferente.
É só analisar o seguinte: tudo que o indivíduo conhece bem, que faz parte da sua realidade e no qual tem certo domínio nas ações, lhe dá estabilidade e segurança. E se ele for para o novo, para o desconhecido, naturalmente vai estar inseguro e passar por dificuldades. Ele quer mudar alguma coisa, está decidido, resoluto, só que quando olha do outro lado não tem nada lá. Porque a sua praia é onde ele está.
Onde ele se situa é o seu habitat, é onde está ajustado, é o seu território, a sua área de conforto. Onde está é o terreno da sua segurança pessoal, corresponde ao terreno da sua construção. É algo sólido, tangível, concreto, seguro e ele se sente bem à vontade com tudo o que acontece ali. Mas quando investe para além ele nada tem, nada possui, nada pode, porque do outro lado é deserto. Deu uma ideia? É por isso que todo ângulo novo para frente é deserto. Para além é sempre deserto para quem estava do outro lado.
A visão do outro lado é uma visão da frente, uma visão adiante. Sem dúvida uma visão esperançosa, porém uma visão de deserto porque não se está acostumado com aquilo.
Daí, é comum surgir o comodismo: “Puxa vida, eu já estou tão organizado nesse padrão, agora vou ter que começar tudo de novo para mudar?! Eu estou quase desanimando, porque é muita dificuldade, é muita resistência”. E alguns se acomodam, por medo ou falta de coragem para enfrentar a nova realidade. Diante da proposta que se abre, paralisam e ficam com os valores potencializados, às vezes, por muito tempo. Preferem ficar no ponto de segurança e largam o sonho pra lá. Deixam o ideal de lado. Abrem mão do investimento e da possibilidade de crescer e permanecem onde estão e como estão.
Então, o mundo está cheio de gente que quer mudar. Mas quando olha para o outro lado e percebe que para crescer tem que viver o momento da transição, vê que é preciso entrar em um lugar em que não tem experiência, fica sem saber se deve ou não investir.
E cá pra nós, tanto no âmbito exterior quando no interior a maioria das pessoas não está preocupada e interessada em mudar. Além do que, quem é que aceita a mudança numa boa?
Redenção
Verdade seja dita: a transição não é um capricho divino. Acima de tudo, é uma proposta de libertação. Ela marca o sistema evolucional como o grande instrumento de redenção.
Nós todos gostamos de ficar onde estamos, gostamos de fazer o que estamos acostumados, mas para avançar temos que passar por isso. Para alcançar objetivos mais elevados é necessário o trânsito e a superação das intempéries desse ambiente difícil.
O deserto é onde começa o mecanismo. É onde qualquer estruturação em bases novas tem que se fundamentar. É gestação necessária para a nossa trajetória toda vez que redirecionamos nossos passos, e não tem como ser diferente. É o ambiente de transição que prepara novos ciclos de vida, momento para novas edificações.
Para o alcance do equilíbrio e da firmeza passamos todos, cada qual a seu tempo, por esses transtornos e estágios, como se por meio deles novos elementos pudessem emergir para novas posturas e posições no contexto em que estamos inseridos.
Desafio e determinação
Sabe por quê é tão difícil mudar? Porque o negócio do outro lado não é fácil. Aliás, para a ascensão não tem nada fácil. Entrar no deserto é se lançar num lugar em que não se tem experiência alguma.
Quando a pessoa quer progredir o deserto a coloca nos planos do desafio. Mudar é entrar no deserto, e o deserto desafia. O próprio valor informativo nos aponta um caminho novo e esse caminho novo tem um sentido muito desafiador para nós.
E não há quem não passe por esses momentos na proposta de crescimento. São lances da vida. Você conhece alguém que em momentos culminantes deixou de ser desafiado?
É por isso que é tão difícil crescer. Muita coisa que nós ficamos pensando em fazer e levar adiante passa a nos incomodar diante desse novo quadro que se abre. Sem contar que costumamos encontrar resistências de toda ordem. Resistências, inclusive, da própria natureza que, às vezes, não oferece aquilo que a gente sente que precisa.
Também não é algo tão complexo que nós vamos largar pra lá e deixar de investir. De forma alguma. Mudar dá medo, dá insegurança, mas quer saber? A gente deveria mesmo é ter medo de permanecer no mesmo lugar e na mesma situação.
É chover no molhado dizer que precisamos ficar calmos, que temos que confiar, todavia o fundamental é não nos abatermos nessa fase. É preciso coragem para se lançar. Pelo menos um grande senso de coragem. E paciência também, para saber vivenciar esse período.
E vale mais uma coisa interessante: não se chega a Jesus sem passar pelo deserto. Nessa situação, todo cuidado e equilíbrio para valorizarmos a experiência, sabendo compreender que é por aí que conseguimos dar os grandes passos para a nossa elevação.