A caridade – Parte 9

Sem iluminação íntima

Bons lá fora

O indivíduo elege aquela filosofia de que tem que fazer o bem para os outros. É cesta básica pra cá, isso pra lá. Quer resolver o problema da humanidade. Quem olha de fora até pensa: “Nossa, ele ajuda tanto. Que santo!” De fato, ele parece o pai da caridade.

Mas não fique achando que pelo fato de participar disso ou daquilo, fazer campanha ou atender no grupo religioso em que frequenta, ele está amando a humanidade não. Vai viver com ele dentro de casa dois dias apenas para ver se você aguenta. Percebeu? A gente tem que ter em conta esses aspectos. Ele pode dizer que a sua paixão são essas atividades, mas quando chega em casa mal entra e já começa gritando:

– Está pronto o almoço?

Ou se vai ao banheiro e ele está ocupado, quase arromba a porta:

– Vai demorar? Eu tô cansado! Fiquei a campanha toda de manhã debaixo desse solão!

Eu dei o exemplo de um, mas são muitos assim. Com os de fora são solícitos e exteriorizam palavras de esperança e paz, a ponto de comoverem multidões, mas não direcionam a mínima gentileza sequer nos corações que os cercam entre as paredes do lar.

E olha que eu nem estou mencionando os que operam em termos de caridade mas são verdadeiros verdugos dentro de casa. Semeiam a fraternidade, enquanto são complicados, desinteressados e até arbitrários com os mais próximos, valendo lembrar que esses “mais próximos” podem se estender a outros ambientes além do campo doméstico.

Acho que todo mundo conhece gente desse tipo. A presença do indivíduo já é fator que pesa negativamente na atmosfera. Ele complica na administração do dinheiro, no ambiente familiar, no trabalho, no campo social, complica aqui, ali, complica não sei mais onde, e no final das contas ainda leva a virtude de doar o pão e ser uma pessoa caridosa.

Mas não se iluminam

Ele acha que caridade na religião é distribuir cesta básica e cobertor, e ajuda a centenas. Mas tem dia que está daquele jeito. Sabe como é? Não chega perto não que ele dá cada pancada que ninguém aguenta. Distribui, mas é o mesmo irritadiço de dez anos atrás.

Agora, pense comigo. Adianta a pessoa distribuir um caminhão de cesta básica e ficar se indispondo com quem está ajudando a descarregar? Ou, então, fazer uma distribuição no natal e durante a distribuição falar palavrão, ficar de cara fechada, reclamando com um ou com outro e brigando com os meninos? O que você acha? Com essa maneira endurecida, ele enche o estômago dos outros, porém não vibra com o que faz. E não chega a alcançar o plano de harmonia e euforia íntima. Sua mente pode estar voltada ao campo da cooperação, mas seu plano educacional passa longe e deixa a desejar.

Se a proposta é colaborar, de que adianta colocar os necessitados na sua frente e auxiliar de alguma forma nutrindo a mesma irritação, a mesma complicação e as mesmas atrapalhadas que cultiva? Quer dizer, ele pode estar ótimo para fazer o bem para os outros, no entanto não está se educando interiormente. E isso não é bom. Se auxilia e esquece de se reeducar, ele está debaixo do sentimentalismo e não cresce.

Felizmente, muitas pessoas são prestativas com o semelhante em se tratando de necessidades materiais. Todavia, quase sempre continuam sendo menos boas para si mesmas.

E sabe porquê? Porque se esquecem de aplicar a luz do evangelho na vida prática. Prometem muito com as palavras e operam pouco no campo dos sentimentos. Vez por outra reafirmam sadios propósitos de renovação, ao mesmo tempo em que se irritam com facilidade diante das menores contrariedades. Frequentam os templos católicos, as igrejas evangélicas ou os grupos espíritas, voltando a cada semana a esses núcleos nas mesmas condições em que estiveram na semana anterior, e requisitando continuamente a mesma coisa: conforto material e auxílio exterior. Estudam o livro sagrado, ou pelo menos a letra dele, mantendo-se indiferentes à auto iluminação.

Visitam hospital, atendem, fazem isso e aquilo. E a reeducação, que é bom, fica no ponto zero.

Existem muitos trabalhando nessa linha periférica, e estão fazendo o bem. Não estão errados não. Só estão limitados. É que a caridade, na essência, começa na vida mental. Fazer lá fora nós temos que fazer mesmo. Não tem jeito. Nós temos que andar, visitar, fazer alguma coisa. Mas enquanto ficarmos nessa área, sem trabalhar o campo intrínseco, nós podemos fazer amigos, todavia não vamos resolver efetivamente a nossa caminhada. Ficou claro? E sem nos atentarmos para a reeducação interior, ficamos suscetíveis de cairmos nos mesmos lances que nos cercearam o crescimento. Afinal, temos que ser caridosos para conosco. Porque é a luz que projeta e indica caminhos.

Permanência no escuro

Pode acontecer de alguém passar grande parte da sua vida servindo e ajudando, não pode? Colocou na cabeça que tem que auxiliar o semelhante e faz. De fato, sozinho ele é capaz de fazer a caridade que muitos de nós, somados, não fazemos.

Pelo grau de solidariedade, treinou interagir no contexto social e tornou-se um produtor de amigos. Faz milhares e ganha em conexões afetivas com aqueles que são reconhecidos. Só que permanece estacionado e é o mesmo de décadas, sem qualquer alteração íntima.

Quer dizer, ajudou e fez amizades, mas não melhorou a sua condição interior. Não utilizou a luz da religião para clarear o próprio coração e não conseguiu dobrar certas estruturas que estão dentro dele. Às vezes, segue trazendo uma grande resistência do seu passado. No fundo, todas as lutas por que passou não lhe modificaram a personalidade. Estende a luz, porém continua na mesma treva de antes.

Sem contar aqueles que não se modificam e ainda justificam: “Não tem jeito, eu sou assim mesmo. Não vou mudar. Nasci assim e vou morrer assim. Fazer o quê, não é!” Em outras palavras, não se abrem para o novo e não se esforçam no testemunho das mudanças.

Tem gente deixando a Terra após ter trabalhado muito no campo exterior em favor do semelhante. Só que a deixa pela mesma porta da ignorância e da indiferença pela qual entrou. Chega ao fim da jornada com a contabilidade em dia: “Na minha vida eu abri o coração. Foram mais de quinhentas campanhas em que doei para os necessitados”. Se bobear, vai chegar no plano espiritual com quinhentos amigos, porém com a mesma treva íntima que chegou aqui. Será que deu pra entender? Vai voltar pra lá com a mesma luzinha e as mesmas paixões, campeão da beneficência e mendigo da luz.

Assim, pode acontecer do indivíduo ter feito amigos na doação do pão sem ter feito luz em seu interior, o que, aliás, é um desafio que estamos tentando apropriar. Por isso precisamos ficar atentos. Se fizermos muito lá fora e pouco dentro de nós mesmos, no sentido de melhoria, é claro que vai haver um resultado positivo. Mas de que natureza? Ganhamos amigos, todavia continuamos tateando. Continuamos às escuras.

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