O remorso
A culpa
Existe um fantasma machucando muita gente por aí. Na verdade, um grande fantasma chamado sentimento de culpa. Tem gente sofrendo demais porque está debaixo dele.
O tempo passa: contínuo, ritmado e incansável. E por mais que passe, chega sempre aquele momento em que os delitos que alguém praticou, e supunha para sempre esquecidos nos escaninhos do destino, lhe assomam à lembrança de forma viva e nítida.
Institui-se uma culpa. Originada quando? Lá atrás. Por ocasião de uma ação menos feliz (a criatura entende que não devia ter feito o que fez, reconhece perante si mesma que seu ato foi inadequado, que agiu em sentido contrário ao que a lei divina exigia dela) ou de uma inércia (abandonou suas obrigações ou fugiu ao dever que lhe competia).
Quando a individualidade envereda por situações negativas no campo moral, agindo em linha contrária aos preceitos que o seu campo mental aponta, desvirtuando-se de um contexto aplicativo no qual já deveria estar nele, é como se ela tentasse dar passos diferentes do que deveria estar dando. O que nos mostra que agindo erroneamente, ou fugindo ao dever, cedo ou tarde nos lançamos nesse sentimento.
O remorso
E o que a misericórdia divina faz? Passa a agir na intimidade para que o despertar se dê em cima de um processo que se inicia com o remorso. Deu para acompanhar?
Ao admitir a culpa, que em algum momento se assoma, a individualidade começa a fixá-la e daí surge o remorso. Ou seja, o sentimento de culpa gera o remorso, que nada mais é que o processo de fixação daquela. Embora apresente múltiplas manifestações, ele tem sempre como base o sentimento de culpa. Consiste na inquietação da consciência, originada pela admissão íntima da culpa ou do crime cometido.
Isto nos mostra que todos os dramas e complexos de culpa se implantam na alma pelos desvios de conduta frente às claridades conscienciais alcançadas. A dureza do sentimento pode coagular e enrijecer a sensibilidade do autor da ação negativa durante um certo tempo, no entanto sempre surge aquele minuto em que o remorso lhe descerra a vida mental aos choques de retorno das suas próprias emissões.
Em outras palavras, a ação (ou omissão) pode estar supostamente esquecida, mas um dia o remorso surge. E sem avisar.
Aprisionamento
Em torno dessa inquietação a onda contínua do pensamento passa a enovelar-se em circuito fechado sobre si mesma, aprisionando o campo mental às faixas inferiores da retaguarda. Remorso é remoer, como que remoendo os núcleos de culpa. Mais ou menos como um disco de música arranhado ou um filme travado que, por não conseguir avançar para o estágio seguinte, fica repetindo a mesma coisa.
Funciona como uma prisão sem grades. Aliás, uma prisão íntima edificada pela culpa. E de segurança máxima. Entre muros mentais ergue-se a própria cadeia. E embora sem grades, o infrator não consegue fugir, não consegue se desvencilhar desse impedimento. Por mais que intente a fuga, usando todos os meios ao seu alcance, não consegue, uma vez que mantém enclausuradas no porão da sua personalidade as impressões destruidoras recolhidas e formuladas no instante da ação.
Você já ouviu aquela expressão muito usada no meio policial de que “o criminoso sempre volta ao local do crime”? É por aí. O criminoso habitualmente volta. Mesmo com a possibilidade de poder ausentar-se da paisagem do crime o seu pensamento se mantém preso ao ambiente e à própria substância da falta cometida. Isso acontece porque a alma armazena com detalhes os erros cometidos em sua própria intimidade, guardando-os com todas as particularidades. O infrator não consegue fugir da justiça universal porque carrega o crime praticado em qualquer local em que estiver.
A conclusão é simples: o homem pode ludibriar os homens, mas não pode iludir a si mesmo.
A gente simplesmente não tem como fugir da gente. Nós podemos fugir dos ambientes físicos, mas da gente mesmo, da nossa própria consciência, não tem como. Não dá pra deletar arquivos. Onde quer que estejamos ela aí estará de forma integral.
E a dor do remorso é imperiosa. Não permite acesso fácil à esfera superior do campo psíquico, porque a consciência culpada nunca esquece. Não esquece e não libera culpado algum sem a conveniente regularização do delito.
Estacionamento complicado e cobrança
Nos círculos da vida física, como nas esferas do plano espiritual, a paisagem real do espírito é uma só: a do campo interior. Cada qual vive com as criações mais íntimas de sua alma.
Eu não sei se você sabe, mas existe um determinismo divino vigorante que estabelece como lei universal a evolução. E criatura humana alguma consegue fugir dela.
O mundo está cheio de seres humanos com remorso. Milhões e milhões deles, na posição de encarnados ou desencarnados, no corpo físico ou fora dele, permanecem algemados às consequências de suas próprias ações. Por não conseguirem fugir da consciência culpada, vivem presos aos reflexos condicionados das emoções perturbadoras a que se entregaram no pretérito, levando consigo, individualmente, onde forem, o estigma dos erros deliberados a que se entregaram.
O negócio é sério. Muitos corações estão sofrendo a ausência da alegria de viver por carregarem culpas e remorsos.
A culpa é um fogo que consome por dentro. E o remorso, como lâmina afiada, retalha aos poucos. Não raras vezes, esse doloroso inferno íntimo constitui a aflitiva condenação. Surge implacável na imaginação acusando e lançando a criatura no despenhadeiro íntimo, de onde só consegue sair ao preço de longos estágios na perturbação e na sombra.
Para se ter ideia da complexidade da questão, muitos desajustes das pessoas no campo psíquico, muitos pontos de dificuldade que elas estão tentando solucionar ao nível de psicoterapias ou coisa parecida, realizando inclusive tratamentos com o uso de medicamentos, vigoram em cima do remorso que as estão corroendo, em que o grau de entristecimento varia de acordo com o que aconteceu na linha alimentícia das causas.
Sem contar que o remorso comumente impõe lacunas de sombra aos tecidos sutis da alma. Provoca distonias nas forças recônditas desarticulando as sinergias do corpo espiritual, criando inclusive predisposições mórbidas para essa ou aquela enfermidade.
Por funcionar como um sinal vermelho de trânsito, ele determina parada.
Agora, há outro ponto que devemos nos atentar. Se por um lado ele é uma bênção porque nos leva à corrigenda, por outro propicia uma brecha através da qual o credor de nossa dívida pode se insinuar cobrando o pagamento. Porque é da lei que toda dívida tem os fantasmas da cobrança. As desarmonias que ele ocasiona são algumas vezes agravadas pelo assédio vingativo dos seres a quem ferimos lá atrás, quando estes encontram-se hoje ligados a nós de forma devastadora pelos processos espirituais da obsessão.
Chamamento ao avanço e trilogia
O remorso é uma posição puramente mental. Não propicia maiores ressonâncias. É um estado estático, intervalo embaraçoso da mente em circuito fechado. Todavia mexe fundo na intimidade. Com ele surge o primeiro sinal de intranquilidade e o primeiro sintoma de desconforto, criando uma alteração em desenvolvimento.
A individualidade pode buscar temperar o seu mundo íntimo com distrações, pode tentar abafar e colocar uma pedra em cima do ocorrido, pensar que é besteira, que ela está ficando sensível. Pode criar argumentos e achar que está escondida na sociedade, até o momento em que circunstâncias surgem e a jogam no fogo em razão do que ela deve.
Paralisado em si mesmo ele é força que algema ao pretérito, uma vez que a fuga aí estimulada não auxilia quem quer que seja na solução de suas dívidas, da mesma forma que o estacionamento não resolve problema algum. Ficar retido no remorso não resolve nada, apenas complica a dificuldade.
Quantos não gostariam de voltar ao passado para corrigi-lo? Titubeiam, choram, imploram, lamentam. Mas não tem jeito. Só existe uma forma de melhorar o passado: indo para a frente.
Além do que, as faltas praticadas vão se amontoando e acabam por criar uma sucata de dores que começam a gritar e pedir reparação, pois sempre chega o dia de reconciliação com a consciência.
Por isso, cair em culpa exige humildade para o reajustamento tão imediato quanto possível do equilíbrio vibratório, se não quisermos o ingresso inquietante na escola das longas reparações.
Como não existe mágica, a matemática da vida preceitua que quem criou a complicação tem, por si mesmo, que descomplicar. O remorso define a constatação da queda e tem a finalidade de preparar a criatura para o arrependimento. Vamos entendê-lo como sendo a etapa inicial de uma trilogia da redenção.
Porque vigora uma linha natural de sequência e fatos que determinam nossa projeção para novas escalas: o remorso, o arrependimento e a reparação. É dessa forma que seguimos evoluindo. No campo íntimo o processo se repete. Com o erro praticado voluntariamente (ou após a falta cometida) instaura-se a culpa. Uma vez instaurado, o sentimento de culpa gera o remorso, que surge para ajudar a restaurar as boas intenções.
Do remorso surge o arrependimento, e o arrependimento (força ou energia preparadora) culmina na reparação ou aplicação das providências retificadoras, até a instauração do Cristo na consciência desonerada ou redimida.
São passos que vão se desencadeando. O importante é entender que nesse mundo atribulado muitos vivem presos no remorso, outros caminham para o arrependimento na elaboração de soluções, e outros, mais adiantados, já estão solucionando o problema.