Não feche circuitos I
Introdução
Eu não sei se você já reparou, mas em se tratando de dificuldades dificilmente um acontecimento vem sozinho. Então, o que acontece? Vão vindo uma sequência de acontecimentos.
A gente vai superando e o que nos preocupa é que às vezes coisas grandes, que poderiam nos desequilibrar, são por nós resolvidas e passam. E ficamos presos numa situação pequena.
Não tem disso? Bate aquela frustração danada: “Meu Deus, o que é isso que está acontecendo? Eu já passei por tantas coisas piores na vida.” Ficamos até sem entender.
Falamos assim porque vencemos coisas vultosas, e uma coisinha simples, uma situação de nada, uma gotinha d´’água, chega e nos derruba. Ficamos desmoronados. A gente sente que tem a dose de conhecimento para administrar a questão, sabe da estratégia certa a ser tomada e sente cair por uma ocorrência pequena.
Quantas vezes acontece isso com as pessoas? No fundo, a criatura até tem os recursos para encontrar a saída. Mas por que não encontra? Não raro, por falta de iniciativa ou por orgulho.
Encasulamento
É comum um acontecimento de fora nos constranger, machucar e marcar. E o pior, nós permitimos ocasionalmente que um fator relativamente isolado do processo tome conta de toda a nossa estrutura íntima de vida. Tudo passa a nortear em cima daquele ponto de vista fechado e cristalizado. Você já passou por alguma situação assim?
E mais, esse ponto de vista fechado e cristalizado é avocado por nós por medo, em razão de preocupações que nós cultivamos ou por um mecanismo automático de defesa.
De forma que mantemos papéis tristes dentro de certos acontecimentos ostensivos. Conforme o grau de intensidade dos problemas que vivenciamos, agora ou no passado, criamos verdadeiros sistemas de bloqueio. Tem gente que cultua uma situação inadequada e fecha o circuito de vida em cima daquilo que não deveria. Concorda?
Maria vai fazer um concurso ou vai se casar no ano que vem. Pronto, ela para tudo. Aquela reunião semanal que gosta de participar, num grupo religioso, não vai mais. Se surge um evento ou um aniversário para ir, já está decidido: simplesmente não vai.
Cláudia vive aquele padrão rotineiro. E não sai do esquema traçado. Abrir-se para novas perspectivas? Você está doido? De forma alguma. Para ela tem o dia de fazer isso e o dia de fazer aquilo. E no dia de fazer tal coisa tem que ficar só por conta do que está definido. Se bobear, o dia inteiro. Chance de mudar algo no programa? Nenhuma.
Gustavo se mantém tão envolvido nas faixas e no sistema que ele elegeu, que passa o tempo e não é capaz de sorrir. Seu Agenor, por sua vez, vive só por conta da família. Isto, sem contar aqueles que transitam pra lá e pra cá apenas debaixo dos impactos.
E cada qual tem as suas justificativas. Na ótica deles razões existem, e razões suficientes que justificam as suas posturas. Fazem um dimensionamento de natureza íntima, hipervalorizam a questão e encontram argumentos adequados para aquelas atitudes.
Não quebram as regras, não saem fora do esquema que montam, não deixam o mundinho que edificaram e acham que têm que dar conta das situações da forma como elas vem.
Equívoco e alienação
É em nome dessa cristalização e dessa hipervalorização de componentes que muitos levam a vida. E não abrem mão do que seja a felicidade dentro da ótica que elegem. Não raro, ficam querendo colocar o universo dentro da pequenez informativa que nutrem e ainda insistem para que outros ajam da maneira como interpretam as coisas.
Quantas pessoas a gente não conhece que estão vivendo assim? Atribuladas. Para elas as coisas não param. É uma correria que não tem fim. Vivem sem tempo. Não têm tempo para nada. Não cumprimentam ninguém porque não têm tempo. Não têm tempo sequer para uma conversa ligeira com uma pessoa amiga que encontram na rua. Passam pela vida empurradas, quase como que se fossem autômatos ou robozinhos.
Às vezes, acontece de alguma fechar circuito em cima do trabalho. Descobriu que a vida dela agora é o trabalho. Que o trabalho é que projeta o ser. Coloca tudo da sua vida em cima do trabalho. Vestiu a camisa do “bom funcionário” ou da “boa funcionária”. E o trabalho para ela virou sabe o quê? Um tremendo componente escravizador.
Eu não sei se você já pensou neste ângulo, mas o “bom funcionário”, na ótica do chefe, muitas vezes não progride. Isso mesmo, ele fica restrito na sua “bondade”. Para o chefe, claro, é uma beleza. O chefe vai embora, porque o “bom” vai dar conta de tudo direitinho. Vai desligar tudo, vai fechar, conferir se tudo está trancado e se não ficou nada fora do lugar. Sem contar que o seu serviço só sai quando está pronto. Aliás, impecável.
O tempo passa e ele fica nisso. Passa anos assim, debaixo de um endosso consciencial que ninguém tira. Sem se atinar que, muitas vezes, nesse mecanismo de fuga, ele tem fugido de muitas coisas.
Tem também aquela pessoa que a gente sabe que está com dificuldade. Liga para ela, pergunta “e aí, fulana, como é que vai”, e ela já vai logo dizendo: “Nossa, você não imagina o que eu estou passando. Sabe aquele problema que você conhece? Pois é, está cada vez pior. Fazer o quê? Aprendi que o meu problema é intransferível.” E, assim, vai arrastando a vida. Se damos espaço, ela retorna de novo no assunto e “blá, blá, blá…”
Sem contar naqueles que passam a vida fazendo projetos. A cada época, uma ideia diferente, um plano novo, uma proposta inédita, sem, todavia, realizar nada do que definiu.